Meditar dia e noite na Lei do Senhor
Sendo que Cristo morreu por todos e que a vocação última do homem é realmente uma só, a saber, a divina!
A vocação (do latim vocatio: ato de chamar) supõe o encontro de duas liberdades: a liberdade absoluta de Deus, que chama, e a liberdade humana que responde a este chamado. A vocação é acontecimento que atinge decisivamente e para sempre a existência de um homem. A experiência da vocação não é necessariamente razoável, coerente e inteiramente explicável; há, pelo contrário, nela, grande dose de mistério – inexplicável humanamente e inapreensível.
É a pessoa que está em questão quando falamos de vocação – cada pessoa é um identidade incomunicável, inapelável e intransferível. Daí que cada vocação tenha esse peso de realidade pessoal: aventura singular de cada qual com o Deus vivo, que marca até os ossos e a medula a existência do homem chamado.
Jesus Cristo é a chave para compreender a vocação, o chamado de Deus, por ser Ele mesmo a Palavra de Deus, sua manifestação histórica e concreta mais pura, acabada e final. Não é possível sentir-se chamado por Deus, descobrir a própria vocação, vivê-la fiel e quotidianamente sem uma relação com a palavra de Deus. Em Jesus, a palavra plena de Deus ao mundo, ouvimos o chamado que contém o plano de salvação de Deus para a humanidade. Isso quer dizer que toda a opção vocacional verifica-se dentro de uma história de diálogo e comunhão, de acolhimento e de relação com Jesus Cristo. Se a opção vocacional, como acolhimento resposta e missão, não for feita em relação à palavra de Deus, torna-se simples busca pessoal, que se ajusta e submete a circunstâncias concretas, interessadas e imediatas.
O anúncio de Jesus Cristo reproduz e atualiza sua Palavra viva e a dos apóstolos e dos profetas. Neste ministério Deus se comunica, Deus chama, Deus dá a conhecer seu plano salvador aos homens. Deus sai ao encontro e chama no anúncio e proclamação da Igreja. A eficácia criadora e ressuscitadora da palavra de Deus atua na palavra viva dos crentes, instrumento pelo qual Deus se aproxima e chama, introduz-se e toma posse dos homens. O fato vocacional cresce e se desenvolve geralmente em clima ou espaço em que a palavra de Deus possa expressar-se e encontrar eco. Não é suficiente um simples atrativo natural e pessoal, inclinação qualquer natural, certo gosto. Onde ressoa a palavra de Deus, ali se nutrem, suscitam e florescem vocações. A leitura da sagrada Escritura, a oração, a celebração da fé permitem à palavra de Deus dirigir-se a cada um, encontrar o ambiente, a situação e o lugar de reconhecimento da mesma. A palavra viva de Deus vivo desperta conhecimento, opção de entrega incondicional, compromisso.
Deus dirige-se ao homem e o chama convidando-o – Ele não coage despoticamente. Seu chamado espera ser ouvido. Os homens podem negar-se a escutar o chamamento que Deus lhes faz; o chamado de Deus ao homem é repetido, porém, às vezes, este pode recusar-se à ouvi-lo. Na medida em que o homem resiste a crer, encontra-se sempre com seu medo, com sua incapacidade, procurando subterfúgios e coartadas mediante as quais fugir ao chamado, sempre imperioso e comprometedor de Deus.
Antes de o homem responder, este deve descobrir o chamado que lhe é dirigido como chamado de Deus. Ainda assim, ele necessita de tempo para compreendê-lo ao experimentá-lo no meio de tanta ambigüidade que cada um lhe porta.
Quando Deus chama uma homem, é para dispor dele inteiramente, de sorte que ele já não é mais dono de si, mas outro domina sua vida. Deus toma a iniciativa de apoderar-se da vida de um homem. O drama do chamado é que será rechaçado pelos homens, aos quais ele encontra com seus próprios dramas, pressões, carências, medos...
Quando Deus se aproxima de um homem, e lhe fala, este fica situado diante de uma opção. Este chamamento de Deus é o meio pelo qual Ele converte os homens inominados em instrumentos de sua vontade. Este acontecimento reveste o homem chamado de mandato, de sabedoria e de responsabilidade. Deus confia uma missão concreta, cujo caráter revela imediatamente ou mais tarde. Este acontecimento é tão determinante que deixa o homem chamado totalmente só com Deus.
Em Teologia, a vocação é inspiração ou moção interior pela qual Deus chama a pessoa a determinado estado ou forma de vida. Sem negar as mediações humanas, afirma-se que, em toda vocação autêntica, a iniciativa é de Deus. Por sua vez, as ciências humanas ocupam-se das disposições naturais e das influências socioculturais que determinam ou condicionam a maior ou menor aptidão de uma pessoa para determinada profissão ou atividade humana.
Teologia e ciências humanas, em suas perspectivas e metodologias próprias, complementam-se mutuamente, para o conhecimento da vocação: a teologia da vocação correndo o risco de encerrar-se em sobrenaturalismo ingênuo e desencarnado quando afastado da realidade humana e as ciências humanas de reduzir o homem, em sua unidade transcendente, a uma fenomenologia parcial, empiricamente verificável, ao desaliarem-se uma das outras.
A tendência atual a identificar os conceitos de vocação e profissão prova a confusão causada pelo reducionismo naturalista que priva a vocação de sua dimensão mais profunda. A colaboração interdisciplinar indispensável não deveria conduzir à uma redução indevida da teologia à perspectiva própria das ciências humanas.
A profissão, em rigor, refere-se à ocupação ou ao trabalho especializado, ao passo que a vocação é o chamado que brota do mais profundo do ser, onde ressoa a voz de Deus. Neste sentido pode-se dizer que a vocação, precisamente por ser realidade radicalmente antropológica, “tem sempre uma dimensão essencialmente religiosa”.
A vocação enquanto chamado de Deus sempre fiel, tende a ser definitiva e irreversível. Tal perspectiva assumida com humildade e realismo nas circunstâncias concretas, ajudará a perseverar nas diversas vocações específicas. Para este fim devem contribuir os métodos das ciências humanas, ajudando a conhecer melhor o homem e o ambiente sociocultural no qual é chamado a dar resposta ao Deus que chama.
Não se pode reduzir a vocação ao momento inicial do chamado divino e muito menos à simples resposta do homem. A vocação é o estado e situação decorrente do diálogo entre Deus e o homem.
Vocação é uma história de amor que deve durar a vida inteira.
Vocação da Carmelita:
Segundo as Constituições, cap.1, n.10: “A vocação das carmelitas descalças é um Dom do Espírito, que as convida a uma “misteriosa união com Deus”, vivendo em amizade com Cristo e em intimidade com a Bem-aventurada Virgem Maria; a oração e a imolação fundem-se vivamente com um grande amor à Igreja”.
Deste n° das Constituições, Pe. Rafael Zubieta tira uma Visão sintética da vocação da Carmelita Descalça, destacando os traços que a definem:
- “um dom do Espírito que as convida a uma misteriosa união com Deus” o que expressa bem o chamado à contemplação;
- “vivendo em amizade com Cristo”;
- E em “intimidade com a Virgem Maria”, Mãe do Carmelo e modelo de adesão amorosa ao Senhor;
- Unindo à vida diária “a oração e a imolação”, característica do Carmelo, que se funde vitalmente com a nova visão Teresiana, um “grande amor à Igreja”;
Daqui segue a visão do carisma: união com Deus em atitude contemplativa, generoso Dom de si e amor à Igreja. Tudo vivido na amizade com Cristo que se configura à Ele e em intimidade com Maria.
Em virtude da própria vocação, o compromisso de viver em continua oração, a carmelita é chamada à contemplação, quer na oração, quer na vida. Neste contexto, de acordo com o carisma deixado por nossa Santa Madre Teresa e sua exigência, “todas as energias de uma carmelita descalça deve estar orientada para a salvação das almas”.
“Na base de toda consagração religiosa há um chamado de Deus, que só se explica pelo amor que Ele tem à pessoa chamada. Este amor é absolutamente gratuito, pessoal e único. Abarca toda a pessoa, a tal ponto que esta já não se pertence, mas pertence a Cristo (1Cor 6, 19). Reveste também o caráter de uma aliança”. PI “Se a alma busca a Deus, muito mais a procura o seu Amado” Ch 3,28. Deus é o que chama, o que envia, o que concede dar fruto para o Reino: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes fruto e para que vosso fruto permaneça” (Jo 15, 16).
“Aquelas a quem Deus chama dão a Cristo uma resposta de amor; que se entrega totalmente e sem reservas e se concretiza na oferenda de todo o ser ‘como hóstia viva, santa e agradável a Deus’. Unicamente este amor, de caráter nupcial, implicando toda a afetividade da pessoa, permitirá motivar e sustentar as renúncias e as cruzes que necessariamente encontra quem quer ‘perder sua vida’ por Cristo e pelo Evangelho” (Mc 8, 35) PI.
Segundo palavras da Santa Madre: “Todas as que trazemos este sagrado hábito do Carmo somos chamadas a oração e contemplação. Porque foi essa a nossa origem: descendemos dos santos padres do Monte Carmelo, que, em tão grande solidão e com tanto desprezo do mundo, buscavam esse tesouro” (cf. 5M 1,2; F 29, 32-33).
A vocação carmelitana, plenamente centralizada na relação com Cristo por meio da oração e da contemplação é – para aquela que Deus chama – a forma própria na qual realizará sua existência cristã, por meio da profissão dos votos religiosos segundo as Constituições.
Movida pelo amor de Cristo, nossa Santa Madre Teresa insere-se na tradição viva, que há séculos atraía, a muitos dos que buscavam a Deus, ao Monte Carmelo para viver junto a Fonte de Elias, “em obséquio de Jesus Cristo”.
Segundo as Constituições, no n° 2 do Cap.1: “As origens da Ordem, o título da ‘Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo’ e as antigas tradições espirituais demonstram a índole mariana e bíblica da vocação carmelitana ”
Partindo da chamada à contemplação, tanto nos momentos fortes de oração como em toda a vida, tal compromisso de contínua oração se faz realidade mediante a vida de fé, esperança e amor (vida teologal). Assim as atitudes profundas da Carmelita fazem dela uma verdadeira orante e a dispõem à união com Deus. As virtudes teologais purificam a pessoa em profundidade, dispondo-a à plenitude da vida em Cristo. Assemelhando-se a Cristo, fazendo que Sua vida seja a nossa vida, a Carmelita se dispõe a receber dons mais abundantes do Senhor, que fazem realidade a vocação à união com Deus (Pe. Rafael Zubieta).
A carmelita vive sua existência contemplativo-eclesial em um clima que harmoniza solidão e silêncio com a comunhão fraterna em uma família que reproduz o clima do “colégio de Cristo”, cujo centro é o amor do Senhor.
Bibliografia:
- Constituições das Monjas Descalças da ordem da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, 1991.
- Ratio Institutionis OCD – A Formação das Monjas no Carmelo Teresiano, Tradução das Monjas do Carmelo São José, Jundiaí/SP, 2003.
- Dicionário Teológico da Vida Consagrada, Dirigido por: Angel Aparício Rodriguez, CMF e Joan Canals Casas, CMF, Ed. Paulus, 1994.
- Dicionário de Santa Teresa de Jesús, Director: Tomas Alvarez, Ed. Monte Carmelo, 2001.
- Las carmelitas Descalzas. Vocación e Misión, Pe. Rafael Zubieta, Ed. Monte Carmelo, 2004.
- Obras Completas de Santa Teresa de Jesus, 2ª Edição, Edições Loyola, Fevereiro de 2002.
- Bíblia Sagrada, 46° Edição, Ed. Vozes, 2002.
- Catecismo da Igreja Católica, Edição Revisada de acordo com o texto oficial em Latim, Edições Loyola, Junho de 2003.